O SUBMUNDO DO COMÉRCIO AMBULANTE

William Araújo
10 min readJan 26, 2024

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Nos arredores dos estádios de São Paulo, ambulantes tentam ganhar a vida comercializando variados produtos do seu time de coração.

Arena da Baixada, casa do Athletico Paranaense, em Curitiba-PR. Foto: William Araújo.

*Texto originalmente publicado em 2018*

O comércio de produtos ilegais tem crescido cada vez mais. Seja em shows ou em eventos esportivos, é comum encontrarmos vendedores ambulantes com os mais variados produtos (camisas, bonés, faixas, bandeiras, cachecóis), entre outros tipos de acessórios. Mas, é impossível negar que o futebol tem o maior destaque nesse quesito. No Brasil, existe um elevado número de times que disputam as 4 divisões do Campeonato Nacional e, consequentemente, a quantidade e diversidade de produtos são extremamente altas.

Os vendedores utilizam desse meio como sustento, viajando pelo país e arrecadando valores até então inimagináveis, mesmo com gastos de compras e encomendas, por exemplo, e com a locomoção para outros estados. E, para entendermos melhor como funciona esse sistema, fui atrás de comerciantes que atuam em dias de jogos dos quatro grandes clubes de São Paulo (Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos), procurando entender os motivos que os levaram para esses caminhos, os produtos que comercializam, as vantagens e atuar nessa área e os riscos da profissão.

Arena Corinthians, casa do Corinthians, na região de Itaquera, zona leste de São Paulo. Foto: William Araújo

ARENA CORINTHIANS

Nos arredores da Arena Corinthians, em Itaquera, conversei com Maria Célia, de 40 anos. O produto que costuma ter maior índice de venda são as bandeiras dos times (grandes ou pequenas), além dos bonés e faixas que fazem parte do seu estoque. Ela compartilhou um pouco da sua história. “Eu trabalho nessa área há vinte anos e já ganhei muito dinheiro. Hoje, meu lucro é um pouco menor porque muitas pessoas começaram a produzir seus produtos em casa e, assim como eu, estão vendendo na porta dos estádios. Mas, independentemente dessa situação, meu trabalho como ambulante me permitiu formar três filhas em cursos técnicos. Como não tive condições de estudar, passei a comercializar produtos esportivos, vi que dava um bom lucro e dei continuidade”.

Quando se trata da fiscalização, Maria tem sua própria estratégia. “Trabalho com mais duas pessoas para driblar a fiscalização. Quando o “rapa” chega, nós camuflamos todos os produtos e saímos o mais rápido possível do local. Quando vemos que a situação está mais calma, nós voltamos. É assim que fazemos todas as vezes para não perdermos nossos produtos. É muito arriscado, mas acaba valendo a pena, já que está muito difícil arrumar um emprego formal e o lucro das vendas costuma ser mais alto se comparado a um serviço de carteira assinada”.

Em relação a fiscalização do comércio ambulante, tive uma breve conversa com um policial que fazia a segurança no dia do jogo do Corinthians contra o Bahia, em rodada vália pelo Campeonato Brasileiro de 2018, para saber o que acontece no caso de um vendedor ambulante ser detido com sua mercadoria. “Não são todos os casos que abordamos durante esses eventos, seja em jogos do Corinthians, São Paulo, Palmeiras ou Santos. Nós costumamos levar o vendedor à delegacia caso ele esteja vendendo camisas falsas ou CDs piratas, pois nesses casos, especificamente, é necessário registrar o boletim de ocorrência. Eu particularmente não gosto de realizar a apreensão dos produtos nessas situações, pois sei que esse meio sustenta muitas famílias. Mas como é minha função, ela deve ser exercida”, completa.

O Allianz Parque, casa do Palmeiras, na região da Água Branca, zona oeste de São Paulo. Foto: José Cordeiro/SPTuris.

ALLIANZ PARQUE

No entorno da casa palmeirense e da estação do metrô Palmeiras — Barra Funda, a presença de ambulantes em dias de jogo é certa. Tradicionalmente, os vendedores são pessoas que já atuam na área há muitos anos ou aqueles que buscam uma nova fonte de renda em tempo de crise econômica. Alimentos, bebidas, bonés, faixas, camisas e bandeias são os produtos dominantes na região.

O ambulante Marcos Alves, de 33 anos, compartilha sobre como funciona o sistema de venda em dia de jogos do Palmeiras. Atualmente, seus produtos são bonés e bonecos de pelúcia (os famosos “cavalinhos do Fantástico”), mas o vendedor já trabalho com a venda de bebidas. “Ficar perto do estádio é complicado. A fiscalização é muito pesada, já que quem fica responsável pela organização das coisas por lá é a GCM. Aqui na região da estação já é mais tranquilo. Se a fiscalização chega, temos mais tempo de poder sair e não perdermos nossos produtos”.

Sobre a margem de lucro, Marcos não esconde que a arriscada tarefa é extremamente rentável. “Os produtos são tabelados e dificilmente um ambulante vai vender a mesma coisa que o outro com um preço muito diferente. Para se ter uma noção, em dias de pouco movimento, dá para conseguir cerca de R$300,00. Em dias muitos movimentados, o lucro dobra ou até mesmo triplica, por mais incrível que pareça”, conta.

O ambulante também diz que consegue sustentar muito bem a sua família com as vendas dos produtos. “Consigo manter tranquilamente. Vivo com minha esposa e filhos e atualmente tenho uma renda maior do que na época em que trabalhava registrado. Além disso, ainda trabalho de cabeleireiro, que é mais uma renda que me ajuda também”. Por fim, Marcos ainda diz que pretende continuar no ramo do comércio ambulante. “Agora que o Palmeiras tem um investimento muito bom, é de se esperar que o time alcance mais jogos decisivos e, consequentemente, conquiste mais títulos. Isso reflete diretamente no torcedor, que passa a buscar mais produtos para registrar essas grandes conquistas”

Estádio Cícero Pompeu de Toledo, mais conhecido como “Morumbi”, na região do Morumbi, zona sul de São Paulo. Foto: William Araújo.

MORUMBI

No Morumbi, a história é praticamente a mesma. Conversei com Marcos Paulo, de 35 anos, que trabalha a cerca de 2 anos como ambulante de forma independente, e que também possui alguns “bicos” por fora, como auxiliar de enfermagem, cabelereiro, prensista e pedreiro, que ajudam a compor a renda no final do mês.

Marcos conta também qual a sua média de gastos e lucro por mês e/ou jogos individuais. “A gente gasta em média uns R$ 1.000. Quando é jogo em outros estados, gastamos um pouco mais. E o faturamento não é ruim. Fica na faixa de R$ 3.000 a R$ 4.000 por mês. Tem jogo que você consegue faturar cerca de R$ 800, dependendo da partida e do campeonato”. Ele conclui falando sobre a ação da fiscalização em relação ao comércio ambulante e aproveitou para deixar sua posição em relação à forma que a prefeitura age. “A fiscalização embaça mais quando tem show de banda internacional. Vem muitas autoridades e eles precisam mostrar que estão combatendo a pirataria. Mas tem jogo que eles embaçam bastante. Eles falam que nós não pagamos impostos, mas nosso serviço gera muitos empregos, mesmo que irregular. Por exemplo, se eu pego um boné com o fornecedor, o fornecedor pega com a fábrica e a fábrica compra os tecidos. Alguém vai pagar os impostos. Eu acredito que eles pegam no nosso pé porque eles querem que trabalhemos de carteira assinada. São cerca de 12 milhões de pessoas trabalhando com isso, então são 12 milhões de pessoas que não contribuem para o INSS”.

Durante o clássico entre São Paulo e Palmeiras (06/10), válido pela 28ª rodada do Campeonato Brasileiro de 2018, tive a oportunidade de conversar com Carlos Sanchez, de 17 anos. Perguntado sobre o trabalho dos ambulantes, Carlos demonstrou extrema insatisfação. “É extremamente frustrante, porque eu comprei o ingresso agora e eu não consegui entrar no estádio. Eles me roubaram”. Ele aproveitou a oportunidade e deu seu posicionamento sobre os produtos que são comercializados do lado de fora dos estádios. “Acho legal, acho que dá pra arrecadar um dinheiro, mas não da forma que eles fazem.”

A Vila Belmiro, casa do Santos, localizada na Baixada Santista. Foto: Ercides Rodrigues/VisualHunt.

VILA BELMIRO

Nas imediações da Vila Belmiro, é possível notar as diversas situações que os ambulantes encaram, desde a fiscalização até a presença de “fregueses”, que sempre estão comprando com o mesmo varejista.

O torcedor Leonardo Luís, de 21 anos, residente da capital paulista, rotineiramente vai à Vila e sempre toma sua “sagrada cerveja” em frente ao estádio para acompanhar a chegada do time e catar o hino do clube, além de jogar conversa fora com outros torcedores. “Nó sempre presenciamos o Santos. É sempre gratificante estar nesse templo. Infelizmente não é permitido o comércio de bebidas alcoólicas lá dentro, por isso bebemos aqui fora e conversamos enquanto esperamos o ônibus com os jogadores”, conta.

O comerciante Paulo Rogério, complementa a declaração. “O Léo é um dos meus clientes mais antigos. Ele sempre vem ao meu ponto e trocamos longas conversas. Ele diz que sempre que compra comigo, o Santos tem sorte”. Quando questionado sobre os produtos que comercializa, Paulo diz que seu foco são naqueles que costumam trazer maior lucro nas vendas. “Sempre trabalhei com alimentação, como churrasco e bebidas (água, cerveja, refrigerante e bebidas quentes). As bebidas quentes e o churrasco são o que costumam trazer maior lucro, já que são mais procurados entre os jovens”.

A fiscalização está sempre por perto, e com a aproximação do horário do jogo e, consequentemente, uma maior movimentação de torcedores ao redor do estádio, ela se intensifica e faz com que os ambulantes mudem para seus respectivos “pontos”. O fiscal Roberto Almeida, de 46 anos, conta que os problemas de fiscalização são mínimos. “A fiscalização aqui na Vila Belmiro é muito mais branda do que em eventos, pois já existem os locais demarcados que são permitidos para os ambulantes, e geralmente os vendedores atendem nossas solicitações”.

É perceptível também a existência de uma “união” entre grande parte dos ambulantes. Uma disputa por vendas, por exemplo, não gera nenhum tipo de confusão. Segundo a vendedora de lanches e salgados Luiza Dias, de 50 anos, são poucas as situações que incomodam os vendedores. “Aqui o pessoal respeita os mais velhos e, graças a Deus, eu estou nessa lista. Porém, é importante você ter um “jogo de cintura” muito grande por aqui. Não posso garantir que todos são unidos, mas é uma grande parte, cerca de 80% dos comerciantes. Às vezes os outros querem chegar e já “sentar na janela”, não respeitando ninguém, mas fora esses, nós nos entendemos muito bem”, encerra.

A VISÃO DOS ESPECIALISTAS

A posição de especialistas relacionados ao setor econômico e esportivo em relação ao comércio ilegal nos estádios é essencial para entender as vantagens e desvantagens de se trabalhar como vendedor ambulante. Para isso, conversei com Daniel Silva, gerente de uma loja de materiais esportivos, e com o economista Anderson Rocha, para tentarem explicar a ascensão da profissão.

Para Daniel, já faz um bom tempo que a venda de produtos falsificados não causa um grande impacto nas lojas que trabalham apenas com artigos originais, já que o público para ambos os lados é bem diferenciado. “Existem pessoas que não tem condições financeiras de comprar uma camisa original do seu time ou que não possuem um certo conhecimento para diferenciar o original da réplica. Geralmente, são essas que costumam comprar dos ambulantes em torno dos estádios. Já aqueles torcedores que vão aos jogos com uma frequência maior e que possuem uma condição financeira um pouco melhor, eles darão prioridade à compra de produtos originais (camisas, bonés, calças, casacos e acessórios). É quase certo dizer que existem um compromisso por parte desses torcedores”, afirma.

De acordo com o gerente, ainda há uma série de regulamentações para a venda de artigos esportivos em lojas físicas. “Os preços das camisas, por exemplo, devem ser praticamente tabelados, sem muita diferença de uma loja para outra. Caso isso ocorra, é possível realizar uma denúncia no qual as grandes marcas como Nike, Adidas, Puma e Umbro podem acabar recolhendo os produtos em questão da loja. Um preço muito baixo age diretamente na “desvalorização” da marca, e eles não permitem isso. Já pela internet a situação é completamente diferente. Os preços geralmente são mais baixos por conta dos custos, que são completamente diferentes, e a chance de encontrar produtos em promoções é muito maior do que em uma loja física, que precisa bancar aluguel do espaço, funcionários, despesas, possíveis gastos com transporte e os impostos que são cobrados”.

Já para Anderson, a análise do cenário como um todo (estrutura da área externa de cada estádio, índice de desemprego em constante crescimento, falta de incentivos e excessos de burocracia para a abertura de pequenas empresas) é o ponto mais importante para entender a manutenção e crescimento do comércio ilegal. “O imposto para pagar geralmente é de 4% sobre a venda bruta. Como cada ambulante vende em média R$ 3 mil, o valor de impostos sonegados gira em torno de R$ 120, e se multiplicado por 200 ambulantes, o governo perde em média cerca de R$ 24 mil em impostos”.

O economista ainda acredita que, em determinadas situações, o próprio vendedor pode estar beneficiando o ambulante. “Acredito que se os produtos falsificados estão impactando na venda dos produtos originais, a economia desse nicho pode ter circunstâncias de dois problemas: o valor elevado do produto ou o preço acima das condições financeiras do público-alvo. Um dos fatores que estão tendo maior influência no valor final da camisa é a carga tributária com uma porcentagem de custo entre 35% e 40%. Os demais, podem estar associados ao transporte, custo de logística, custo de armazenamento, margem de lucro e custo para venda. Enquanto qualquer produto possuir um valor de venda maior que a condição dos consumidores finais, a pirataria terá mercado. Para combatê-la, todo e qualquer tipo de produto diretamente relacionado aos clubes de futebol precisam ter preços menos abusivos e mais dentro da realidade dos torcedores brasileiros”, finaliza.

É importante destacar que, além de camisas dos times brasileiros, o comércio ambulante possui uma enorme variedade de produtos relacionados ao futebol internacional. É extremamente comum ver pessoas utilizando camisas de grandes times europeus como Real Madrid, Barcelona, Paris Saint-Germain, Manchester United, Juventus ou Milan, além das camisas das seleções como Brasil, Argentina, Itália, França e Alemanha. E, por conta dessa enorme diversidade de times, o comércio ambulante tende a crescer cada vez mais e mais no Brasil.

Por William Araújo

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Jornalista | Games e cultura pop | Automobilismo | Futebol | Podcast: @dose_d_melanina

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